A criação do mundo é um dos pilares fundamentais nas tradições religiosas judaica e cristã. Ambas as religiões se baseiam no relato bíblico da criação no Gênesis, que narra como Deus criou o universo, a Terra e todos os seres vivos em seis dias, descansando no sétimo.
Apesar de compartilharem essa narrativa sagrada, as duas tradições religiosas interpretam e compreendem o Gênesis de maneiras diferentes, refletindo suas respectivas tradições teológicas, culturais e históricas.
Entender essas nuances ajuda a lançar luz sobre como cada religião vê a criação e o papel de Deus no universo. A seguir, exploraremos como o Gênesis é interpretado tanto por judeus quanto por cristãos, destacando as diferenças e semelhanças em suas visões sobre a origem do mundo.
Sumário:
O Livro de Gênesis: Um Resumo
Antes de explorar as perspectivas judaica e cristã sobre a criação no Gênesis, é importante conhecer o conteúdo e o contexto do relato. Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, começa com a icônica frase: “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gênesis 1:1). A narrativa continua detalhando cada ato criativo de Deus, desde a separação da luz e das trevas até a criação dos humanos à sua própria imagem e semelhança.
O capítulo 1 descreve um processo de criação ordenado em seis dias, com Deus criando diferentes elementos do universo em uma sequência progressiva. Cada dia termina com a declaração de que “viu Deus que era bom”, e o sétimo dia é descrito como o dia em que Deus descansou, santificando-o.
Nos três primeiros capítulos do Gênesis, encontramos a base para muitas crenças e práticas judaicas e cristãs, que oferecem respostas para questões fundamentais sobre a existência humana, a natureza do universo e o relacionamento entre o Criador e sua criação. A partir dessa base comum, cada tradição religiosa desenvolveu suas próprias teologias e interpretações.
A Criação no Gênesis: Perspectiva Judaica
A tradição judaica vê o relato da criação no Gênesis como uma revelação de Deus para a humanidade. O judaísmo, ao longo de milênios, desenvolveu várias interpretações ricas e profundas do texto, com um foco especial no significado espiritual e ético da criação.
A Criação no Primeiro Dia
A ideia de que Deus criou o mundo a partir do nada (“ex nihilo”) é central na interpretação judaica. Segundo muitos estudiosos e rabinos, como Rashi, um dos maiores comentaristas da Torá, o relato da criação no Gênesis reflete o desejo de Deus de estabelecer um universo onde sua presença pudesse ser sentida e reconhecida.
Além disso, a palavra hebraica para criação (“bara”) implica não apenas o ato de criar, mas também a ideia de que a criação é contínua. Na visão judaica, Deus não apenas criou o mundo uma vez, mas continua sustentando-o e mantendo-o em funcionamento.
A Criação do Homem
O ser humano, criado à imagem de Deus, ocupa um lugar central no relato da criação no Gênesis. No judaísmo, isso significa que o ser humano é dotado de características divinas, como a capacidade de raciocínio, a escolha moral e a responsabilidade de cuidar da criação. A criação da mulher a partir da costela do homem também é interpretada como uma mensagem de igualdade e interdependência entre os gêneros.
Além disso, a tradição judaica destaca a importância da obediência aos mandamentos divinos, e o relato da criação serve como um lembrete de que os seres humanos têm um propósito especial no plano divino: viver em harmonia com as leis de Deus e com a criação.
A Criação e o Shabat
Um dos aspectos mais significativos da criação no Gênesis para o judaísmo é o conceito de Shabat, o dia de descanso. Deus descansou no sétimo dia, e esse ato divino foi consagrado como um mandamento para o povo judeu. O Shabat é visto como uma oportunidade para o ser humano refletir sobre a criação e reconhecer a soberania de Deus sobre o universo.
Esse dia sagrado também reforça a ideia de que a criação é algo a ser celebrado e preservado, e que o ser humano deve equilibrar o trabalho com o descanso, honrando a obra de Deus.
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A Criação no Gênesis: Perspectiva Cristã
A tradição cristã compartilha muitas das crenças judaicas sobre a criação no Gênesis, mas desenvolve interpretações teológicas que colocam Jesus Cristo no centro do plano criativo e redentor de Deus.
A Criação em Cristo
Uma diferença significativa entre as duas tradições é que, para o cristianismo, a criação no Gênesis não apenas revela a soberania de Deus, mas também aponta para o papel de Cristo na criação. O Evangelho de João, no Novo Testamento, começa com uma referência direta ao Gênesis: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1:1). Muitos teólogos cristãos interpretam essa passagem como uma afirmação de que Cristo, o “Verbo encarnado”, estava presente e ativo na criação.
O apóstolo Paulo, em Colossenses 1:16, também reforça essa ideia ao afirmar que “nele [Cristo] foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra”. Assim, o cristianismo vê a criação como uma obra conjunta do Pai e do Filho, revelando a cooperação dentro da Trindade divina.
A Queda e a Redenção
Outro aspecto central da visão cristã da criação no Gênesis é o conceito da queda do homem. No capítulo 3 de Gênesis, o relato de Adão e Eva desobedecendo a Deus e comendo do fruto proibido é interpretado pelos cristãos como o evento que introduziu o pecado no mundo. Essa queda é vista como o motivo pelo qual o mundo está corrompido e por que os seres humanos precisam de redenção.
No entanto, o cristianismo também vê a queda como o prelúdio da redenção em Cristo. Onde Adão falhou, Cristo triunfou, e sua morte e ressurreição são vistas como o meio pelo qual Deus está restaurando a criação, oferecendo salvação a toda a humanidade. Para muitos cristãos, o Gênesis aponta para a necessidade de um Salvador, e a obra de Cristo é vista como a reversão dos efeitos do pecado e da morte introduzidos no Éden.
Interpretações Literais e Simbólicas da Criação no Gênesis
Tanto judeus quanto cristãos debatem se o relato da criação no Gênesis deve ser interpretado de forma literal ou simbólica. Alguns grupos religiosos, como o fundamentalismo cristão e algumas tradições judaicas ortodoxas, defendem uma leitura literal, acreditando que o mundo foi criado em seis dias literais de 24 horas.
Por outro lado, muitos estudiosos e teólogos modernos, tanto no judaísmo quanto no cristianismo, interpretam o Gênesis de maneira simbólica ou alegórica, vendo-o como uma narrativa rica em significado espiritual, mas que não necessariamente descreve eventos históricos de forma precisa.
Judaísmo e Interpretação Simbólica
Na tradição judaica, as escrituras são frequentemente interpretadas em níveis profundos de significado. O Talmude e o Midrash, dois textos importantes no pensamento rabínico, oferecem muitas interpretações alegóricas da criação no Gênesis. Os seis dias da criação, por exemplo, são vistos não apenas como períodos de tempo, mas como símbolos de ciclos espirituais e morais.
Essa abordagem permite que o judaísmo mantenha uma conexão com o Gênesis, mesmo à luz de novas descobertas científicas e filosóficas. A criação é, então, entendida como um mistério divino que transcende o tempo e a compreensão humana.
Cristianismo e Interpretação Simbólica
Dentro do cristianismo, muitos teólogos modernos argumentam que o Gênesis foi escrito em uma época em que os conceitos científicos eram inexistentes ou muito rudimentares, e, portanto, a criação deve ser entendida em termos teológicos, não científicos. A criação em seis dias é vista como uma estrutura poética que destaca a ordem e a intencionalidade de Deus ao criar o mundo.
Essa perspectiva permite que o cristianismo dialogue com as descobertas da ciência moderna, sem comprometer as crenças fundamentais sobre Deus como o Criador.
A Criação no Gênesis e a Ciência
Tanto o judaísmo quanto o cristianismo enfrentam desafios em reconciliarem o relato da criação no Gênesis com as descobertas científicas modernas, como a teoria do Big Bang e a evolução biológica. Esses temas têm sido amplamente discutidos, com abordagens variadas em ambas as tradições.
Judaísmo e Ciência
A tradição judaica tem uma longa história de diálogo entre fé e ciência. Maimônides, um dos maiores filósofos e teólogos judeus, argumentou que a ciência e a fé podem coexistir harmoniosamente. Para muitos judeus, o relato da criação no Gênesis não entra em conflito direto com as descobertas científicas, mas sim complementa o entendimento da realidade. A criação em seis dias pode ser vista como uma metáfora para diferentes estágios do desenvolvimento cósmico, permitindo que a fé seja mantida enquanto se aceita a validade da ciência moderna.
Além disso, muitos estudiosos judeus interpretam o conceito de “dias” no Gênesis de forma não literal, sugerindo que os “dias” da criação podem representar longos períodos de tempo, compatíveis com a evolução e outras teorias científicas. O foco é manter a reverência pela narrativa bíblica, ao mesmo tempo que se reconhece a contribuição da ciência para a compreensão do universo.
Cristianismo e Ciência
No cristianismo, o diálogo entre fé e ciência também é complexo. Muitos cristãos, especialmente nas correntes fundamentalistas, insistem numa interpretação literal da criação no Gênesis e, portanto, rejeitam teorias científicas como a evolução. Esses grupos argumentam que a Bíblia é a verdade absoluta e infalível, e que os relatos científicos que contradizem a criação literal devem ser descartados.
Por outro lado, muitos teólogos e cientistas cristãos têm trabalhado para reconciliar as narrativas bíblicas com as teorias científicas. O movimento do “criacionismo evolucionista” ou “evolução teísta” é um exemplo disso. Os defensores dessa visão acreditam que Deus usou o processo evolutivo como um meio de criar o mundo, vendo a ciência como uma forma de revelar os métodos divinos. Nessa perspectiva, a criação no Gênesis é um relato teológico e simbólico da ordem criativa de Deus, enquanto a ciência explica os detalhes de como isso aconteceu.
Posições conciliadoras
Tanto no judaísmo quanto no cristianismo, existem correntes teológicas que procuram construir pontes entre fé e ciência. Essas correntes defendem que o relato da criação no Gênesis não pretende ser um tratado científico, mas uma explicação espiritual e moral sobre a origem do universo e o papel da humanidade.
Por exemplo, a ideia de que Deus é o criador de tudo o que existe não é incompatível com a teoria do Big Bang, que poderia ser vista como o momento em que Deus iniciou o processo de criação. Da mesma forma, a evolução pode ser entendida como parte do plano divino, um processo ordenado que levou à criação da diversidade de vida que conhecemos hoje.
A Criação no Gênesis: Reflexões Finais
A narrativa da criação no Gênesis tem um impacto profundo tanto no judaísmo quanto no cristianismo, sendo uma base comum para muitas crenças e valores em ambas as tradições. Embora as duas religiões compartilhem o mesmo relato bíblico, elas desenvolveram abordagens e interpretações que refletem suas respectivas tradições teológicas e históricas.
No judaísmo, o foco está na contínua sustentação do mundo por Deus e na responsabilidade moral dos seres humanos como guardiões da criação. A observância do Shabat, como um reflexo do descanso divino, é um dos principais exemplos de como a criação no Gênesis influencia a vida religiosa judaica.
No cristianismo, a narrativa de Gênesis é vista não apenas como o início do mundo, mas também como o prelúdio para a vinda de Cristo, que é interpretado como o agente da criação e o redentor da humanidade caída. A queda de Adão e Eva no Éden é um tema central para a teologia cristã, levando à crença na necessidade de salvação por meio de Jesus Cristo.
Por fim, tanto judeus quanto cristãos continuam a dialogar com as descobertas da ciência moderna, buscando harmonizar suas crenças com as evidências científicas sobre a origem do universo e da vida. A interpretação literal ou simbólica da criação no Gênesis varia dentro de ambas as tradições, mas o respeito pelo texto sagrado e seu significado espiritual permanece um ponto em comum.
Conclusão
A criação no Gênesis é um tema ricamente multifacetado, que oferece perspectivas profundas sobre a origem do universo e o lugar dos seres humanos dentro dele. Tanto a tradição judaica quanto a cristã partilham dessa narrativa como a base de suas crenças sobre a natureza de Deus, a criação e a moralidade.
Embora existam diferenças significativas nas interpretações, especialmente no que diz respeito ao papel de Jesus Cristo no cristianismo e nas tradições rabínicas do judaísmo, ambos os grupos religiosos veem o Gênesis como um relato sagrado que oferece uma compreensão única da ordem e da intenção divina no universo.
A criação do mundo continua a ser uma fonte de inspiração, reflexão teológica e debate para fiéis e estudiosos das duas tradições, unindo a fé à busca constante de conhecimento sobre o mistério da existência.